top of page
  • Foto do escritorLucas Barreto Teixeira

Mare of easttown

Existem várias formas de se contar um mistério. Um bom romance policial pode apenas ser um quebra-cabeça complicado e engenhoso, ou apenas uma forma de refletir acerca da natureza de um crime a partir de certa perspectiva. Mare of Easttown, a nova série da HBO, não apenas é capaz de contemplar esses vários elementos clássicos de uma narrativa policial como também conduz o público a uma jornada emotiva e transformadora.

Poucas séries são capazes de trabalhar tão bem o gênero policial, mas a maior parte sempre esteve vinculada ao HBO. Após Sharp Objects, uma exímia narrativa naturalista com mensagens tão fortes, esperei por muito tempo por uma série à altura, e a espera realmente valeu à pena. Easttown é uma cidade pequena, com uma comunidade interligada por diversos e variados laços, até crimes nefastos romperem o equilíbrio social. A investigadora Mare Sheehan (Kate Winslet) aparece como uma figura familiar aos residentes, impondo respeito e temor em medidas equilibradas, com a missão de desvendar o desaparecimento da filha de Dawn Bailey (Enid Graham), uma de suas melhores amigas, e o assassinato da jovem Erin McMenamin (Cailee Spaeny), isso tudo enquanto lida com o luto pela morte de seu filho.

Mare of Easttown tem um tema claro: a maternidade. As vítimas, por exemplo, eram mães precoces, capazes de fazer tudo por seus filhos. A investigadora, de forma semelhante, cuida de seu neto como o filho morto, angustiada em perder a guarda para a mãe da criança. Há ainda vários arcos secundários em que é perceptível como essas mães fazem de tudo por seus filhos, inclusive medidas drásticas cujas repercussões abalam estruturas e ferem a união da comunidade. Dessa forma, Mare cada vez mais mergulha em uma espiral obsessiva nos casos, unindo o mistério com sua vida pessoal sem desperdiçar nenhum segundo sequer de tela, com sentidos próprios para mover a trama adiante.

É difícil misturar drama e suspense, porém aqui a série acerta em todos os aspectos possíveis. A vida particular dos personagens é genuinamente interessante, e nada se prolonga para além do necessário, com o roteiro se utilizando de sutilezas para dizer o que não precisa ser mostrado. Por outro lado, nenhum caso é óbvio, sempre com algum elemento oculto que passa despercebido até uma grande revelação em outro momento da narrativa. Quando os dois lados da trama se encontram, ocorre uma transformação nos personagens, sempre de uma forma coerente e satisfatória ao público.

Há ainda outros elementos para serem discorridos, porém não há nada de exatamente novo aqui. Na verdade, a competência da série está em desenvolver uma estória simples e clássica aperfeiçoando suas partes, sem ter a intenção de extrapolar ou reinventar a roda. Pessoalmente, considero esse fator a maior qualidade da série, visto que são poucas as narrativas que se empenham tanto para melhorar o que já existe, ao invés de estabelecer um novo mais fraco. Contudo, há algo na postura de Mare, enquanto agente policial, que realmente me impressionou: a descaracterização do ofício.

Cada vez mais é difícil criar personagens policiais simpáticos ao público. Enquanto instituição, em qualquer lugar do mundo, a polícia é truculenta, sórdida e capataz do falho sistema jurídico. Mare, porém, por ser tão conhecida e querida por sua comunidade, age em função dela ao invés dos propósitos claros da lei, atendendo pessoalmente idosos preocupados e ignorando delitos menores para não sacrificar vidas por deslizes juvenis. Seu zelo é cativante, e abre espaço para uma quebra de expectativa quando ela passa agir de acordo com as regras da instituição, gerando frustração de seus conhecidos quando passa a exercer seu cargo. O final da série, inclusive, traz uma interessante reflexão sobre as consequências de um crime, e até quando uma punição penal pode ser considerada justa, ou até mesmo correta.

Mare of Easttown é uma série obrigatória a quem se interessa por narrativas desse estilo. Seus temas são profundos, a narrativa é concisa, os conflitos são inteligentes e o conjunto da obra é um pacote perfeito ao público. Não sei em que direção os produtores podem levar a série em uma eventual segunda temporada, mas não me preocupo com isso. Em seis episódios, a obra foi capaz de fazer o suficiente para se bastar em si mesma.


111 visualizações0 comentário
bottom of page