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A cultura do esvaziamento de pautas

  • Foto do escritor: Lucas Barreto Teixeira
    Lucas Barreto Teixeira
  • 28 de jun. de 2021
  • 7 min de leitura

Toda criação artística é influenciada pelo tempo histórico. Ao considerarmos a definição de Walter Benjamin, em que a essência de toda obra depende de historicidade e autoria, a mera existência de arte é politizada em si mesma. Dessa forma, dizer que cultura pode ser "apolítica" é fruto de exagero ou simplesmente ferramenta torpe de alienação. Ainda assim, grupos sociais insistem em apagar a influência sociopolítica em diversas obras para contemplar suas próprias visões de mundo, gerando um eterno e tolo debate de ideias a respeito de algo claro e simples, movimentando massas a favor do esvaziamento simbólico de inúmeras narrativas e criadores.

É verdade que toda obra carrega sentido, mas é importante entender como símbolos podem ser interpretados e percebidos pelo público. Existem obras explícitas, claras em seu posicionamento e de cunho ideológico reiterado, enquanto outras podem deixar tais temáticas como pano de fundo, influenciando tramas e personagens de forma implícita. Em ambos os casos, entretanto, é possível observar os grupos que buscam desviar posicionamentos para os próprios interesses, e é esse evento que pode ser chamado de esvaziamento de pautas. Alguns exemplos são óbvios, como quando a extrema-direita se apropria de críticas ao capitalismo e as transforma em elogios, mas na maior parte das vezes esse fenômeno se dá a partir das sutilezas, muitas das vezes inventando ou ignorando passagens para obras servirem a propósitos dúbios.

Vamos começar pela parte mais simples e absurda. O que me inspirou a escrever o presente texto foi um singelo comentário a respeito de Farenheit 451, romance distópico clássico de Ray Bradbury, onde o crítico anônimo atestava que o autor, pelo livro, escrevera uma rígida crítica ao socialismo. Acostumado pela natureza da obra, confesso ter achado graça naquilo, mas logo me pus a pensar em como alguém poderia ser capaz de chegar em tal conclusão. Logo me veio em mente 1984, outra distopia clássica, dessa vez escrita por George Orwell, e em como a obra é percebida por essas mesmas pessoas. De forma resumida, o autor se considerava socialista, ao menos utópico, tendo feito algumas ações contraditórias a seu posicionamento político em vida, e escreveu diversos romances com duras críticas ao regime stalinista instaurado na União Soviética. A questão é que, atualmente, o autor é tido por grupos de direita enquanto um guru anti-socialista, mesmo que suas críticas, hoje, sejam mais adequadas quando colocadas em como a estrutura ocidental capitalista tenha se organizado.

De qualquer forma, nenhum dos autores, em qualquer momento, colocaram-se enquanto apoiadores de tais movimentos. E mesmo que Orwell tenha escrito duras críticas ao stalinismo, Bradbury sempre escreveu voltando suas críticas ao capital, e esse não é, nem de longe, o único autor a ser vítima de tal percepção, com outras distopias clássicas como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, sendo captadas por grupos que antes tanto criticava. Os exemplos são infindáveis, e até com obras modernas o processo é observado, como em Matrix, que é visto como alegoria de extrema direita mesmo após as diretoras Wachowski afirmarem, publicamente, que o filme se tratava de uma alegoria de visibilidade Trans, rendendo, inclusive, um dos melhores momentos das redes sociais, quando a própria criadora colocou o antigo ministro de educação do governo Bolsonaro em seu devido lugar de mediocridade.

Toda essa relação de percepção da obra resultou em um momento icônico no cenário de ficção especulativa. Insatisfeitos pela "politicagem" e "doutrinação" presentes em obras contemporâneas, um grupo radical se uniu para sabotar o prêmio Hugo, evento de maior prestígio internacional de ficção científica, combinando votos em romances próprios que defendessem os valores e ideais de direita. Infelizmente, toda a farsa foi um sucesso, deixando brilhantes autores serem humilhados pelo voto popular, elegendo patifarias literárias como vencedoras da premiação, vazias e rasas.

Voltemos ao conceito de Walter Benjamin. A Aura de toda obra depende de historicidade e autoria. O aspecto histórico esteve sempre presente na produção literária, basta ver como mulheres no realismo português eram sempre humilhadas por homens, restando a elas a tragédia para livrar a culpa masculina, ou como romancistas ingleses navegaram pela miséria trágica resultante da revolução industrial. Por outro lado, a autoria está relacionada à estética e na produção textual em si, uma vez que a forma instrumentalizada referencia outras obras. A consagrada autora Ursula Le Guin, ao meu ver, é um dos melhores exemplos contemporâneos para visualizar tal relação, pela forma como descreve severas críticas a partir da especulação, abrangendo sua literatura mas nunca deixando de lado seu claro posicionamento. O curioso, entretanto, é pensar que grupos de direita, por mais que a obra da autora se assemelha aos clássicos, não busca coopta-la. Ao invés disso, dirigem a ela ofensas e baixarias, buscando esvaziar a autora antes da obra. Eu acredito que, aqui, o gênero desempenhe um importante papel para tais grupos separaram o que pode ser aproveitado e o que deve ser descartado, e em minha mente logo vejo a franquia Star Wars, que durante a posse de George Lucas, mesmo com suas críticas contra o autoritarismo e o imperialismo, era cooptado, enquanto que posteriormente, com Kathleen Kennedy, foi alvo de ataques virtuais, ameaçando a vida de atores e atrizes, além da própria responsável pelo produto final.

Tendo entendido como o esvaziamento pode se dar, gostaria de entender, agora, as razões para o fenômeno existir, e como é feito a escolha geral de quais obras podem ou não podem ser cooptadas por tais grupos. No entanto, antes, há ainda outras formas de esvaziamento que, ao serem caracterizados, possam nos ajudar a chegar à raiz da questão. Vimos, até agora, como obras e autores são esvaziados para fundamentarem uma ideologia, e como ataques e ofensas pessoais são capazes de mover massas contra críticos mais ferrenhos, estabelecendo "inimigos" de tais grupos (é importante ressaltar, a principal forma de alimentar sistemas e ideologias fascistas é pela defesa própria contra um grupo de inimigos invisíveis, de acordo com Umberto Eco; Exemplos: Socialistas e "Liberais" no nazismo, jornalistas e partidos políticos no bolsonarismo, imigrantes e grupos LGBTQ+ na gestão Trump...). No entanto, o esvaziamento que considero mais grave se encontra na mobilização virtual ao redor de grandes mídias, ao menos as mais populares.

Abordei previamente Star Wars, e como suas mensagens anti-imperialistas foram apagadas por grande parte do público, mas gostaria de entrar no espeço virtual de animações, especialmente japonesas, e jogos. Nesses ambientes, sem dúvida, é onde o esvaziamento político se dá com maior força, apagando por completo a força temática de diversas narrativas. Basta observar como One Piece, a Odisséia de Oda, teve sua força política muito habilmente apagada pelos grupos, que ignoram vilões escravagistas, a miséria condicionada pelas elites econômicas e a força policial fascista, apenas para consumir a série pelo apelo estético. Enquanto isso, autores declaradamente imperialistas conseguem fazer sucesso, como visto em Shingeki no Kyojin, que teve sua mensagem oculta, permeando o imaginário do público que ativamente busca bloquear a politização na arte.

Ainda assim, nada chega aos pés do discurso apolítico ao redor de jogos. Um bom exemplo recente seria o aclamado The Last of Us 2, que foi severamente atacado por grupos transfóbicos, aberta e incessantemente. Com essas atitudes, os grupos radicais conseguem, habilmente, afastar grupos sociais de suas próprias histórias, até adquirirem um monopólio do discurso virtual, atacando qualquer um que ouse se posicionar de determinada forma progressista. Assim surgem os fóruns de supremacia racial e opressão sexual que tanto ameaçam o bem estar de qualquer minoria em tais espaços, todos criados e pautados por obras que não dialogam com eles. Claro, até hoje muitas obras, em especial as que romantizam violência, são criadas para servir aos interesses econômicos de tais grupos, mas eles não nasceram neles. Na década de 1980 era muito comum o discurso de "jogos são para meninos", e muitos desenvolvedores foram além para incluir setores estigmatizados para o mercado. Metroid, por exemplo, é protagonizado por uma pessoa repleta de armadura durante o jogo inteiro, apenas para, ao fim, tirar o capacete e se revelar enquanto uma heroína espacial, mostrando em que tipo de espaço mulheres poderiam ocupar. Samus inspirou muitos outros títulos, até o mercado se abrir para minorias no próprio processo de desenvolvimento. Outra forma de ampliar o mercado consumidor foi pelo próprio design andrógino de personagens masculinos, destacando-se aqui, é claro, Link, de The Legend of Zelda, cuja ambiguidade visual foi capaz de colocar em seu lugar qualquer tipo de pessoa. Todo esse processo foi longo e árduo, mas por fim podemos dizer que chegamos a um patamar de certa abertura em tais questões, com ainda muitas melhorias a serem feitas... mas nada disso é refletido no discurso majoritário dessas obras.

A Cultura do Esvaziamento de Pautas não é mero fenômeno, mas sim ferramenta de instrumentalização política de grupos de extrema direita. Posso estar exagerando, mas sou incapaz de enxergar tudo isso enquanto mera ignorância por uma parte tão expressiva da sociedade. Em meio a livros, jogos, filmes e séries, vejo todo esse fenômeno como algo arquitetado para a manutenção de uma ideologia rota. Todo o posicionamento criado pelo ódio se alimenta pelo ódio, e é mais fácil odiar o "outro" desconhecido do que aquilo que se ama. Imagine se as pessoas ocultas no anonimato passassem a refletir sobre aquilo que consomem. Imagine se, de uma hora para outra, percebessem a importância de um papel de liderança delegado a uma personagem de alguma minoria, ou se compreendessem que o mundo ficcional que tanto apreciam é mera alegoria à nossa triste realidade.

Aí reside a ironia de toda a situação. Se voltarmos, agora, para Farenheit 451, podemos entender um pouco mais a importância para o Estado queimar livros: compreendê-los é perigoso, ao contrário da mídia simples, formada por símbolos simples de origem do conservadorismo, prendendo eleitores e possíveis agentes políticos ao estático. Ao lado de 1984, pela era da pós-verdade, seguir cegamente o discurso da maioria (forjada ou orgânica) é mais fácil que interpretar a realidade por si mesmo. É até como se tais livros, tão preciosos a tais grupos, fossem escritos para criticar o fanatismo e a cegueira que tão orgulhosamente empunham. Vai entender...


O presente texto foi apenas possível pelo apoio de nossos leitores.

Obrigado a todos os interessados e aos que buscam sempre se aprofundar um pouco mais naquilo que consomem e tanto amam.


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