top of page
  • Foto do escritorLucas Barreto Teixeira

A falsa meritocracia do jogo da lula

É difícil não viver nas redes sociais sem ouvir falar da série do momento. Foi assim que descobri Round 6, em meio ao fluxo ininterrupto de informações na tela do celular, e logo fui cativado por sua premissa. Você deve ter visto, assim como eu, comparações com obras americanas, como Jogos Vorazes ou Jogos Mortais, mas Round 6 é apenas Round 6, uma trama de violência, miséria e reflexão social.

Em uma sinopse breve, Round 6 é uma série centrada ao redor de uma série de jogos promovida por um misterioso grupo, convocando pessoas em situações diversas de miséria para apostarem suas vidas por uma soma imensurável de capital. Por mais que rejeite comparações diretas com obras já citadas na introdução, aqui abro um parênteses para simplificar a partir de uma outra analogia: trata-se de um "topa tudo por dinheiro" levado às últimas consequências, ainda que carregue consigo as problemáticas de tal tipo de programa midiático. Afinal, a violência gráfica e o drama entre os personagens serve apenas como pretexto para trabalhar uma mensagem política.

Dentre os 456 participantes dos jogos, todos baseados em gincanas e brincadeiras infantis típicas coreanas ou até mesmo reconhecidas mundialmente, a narrativa decide focar em um grupo liderado por Seong Gi-hun (Lee Jung-jae), um pai aparentemente irresponsável, mas que, na verdade, carrega as consequências de ter seus direitos trabalhistas violados. Ao lado dele ainda encontramos Sae-Byeok (HoYeon Jung), uma norte-coreana foragida, que em busca de oportunidades encontrou apenas descaso, Abdul Ali (Tripathi Anupam), um paquistanês execrado pela violência social da elite coreana, entre outros. A partir de relacionamentos forjados com a intenção da sobrevivência, cada um revela seu interior, seus anseios e suas vontades.

Claro, esse estilo de narrativa é relativamente comum, misturando terror psicológico com a fome da sobrevivência humana, porém existe um claro diferencial na obra. Antes de tudo, é uma narrativa criada fora do eixo ocidental, o que por si só o diferencia em forma, entretanto o conteúdo apresenta uma reflexão muito própria e distante do mero sadismo retratado por Hollywood, ou até mesmo na mensagem política de revolução carregada nos romances de Suzanne Collins. O pilar de sustentação da série é o peso socioeconômico da sociedade sul-coreana, além das distorções criadas pelas elites. O sadismo dos bem-alimentados surge pelo marasmo, ou pela super capacidade de poder de compra, excluindo-os do ciclo de consumo porque este só é efetivo uma vez em que exista o conceito de limite. O romance "Jantar Secreto", do brasileiro Raphael Montes, brinca com o mesmo conceito, colocando ricos em festivais antropofágicos por almejarem exclusividade em um sistema criado para oprimir aqueles que os servem. A antropofagia, de alguma forma, é observada aqui com o deleite dos membros "VIPs", observadores glutões, satisfazendo-se por apostas de risco, apesar de nunca existir risco financeiro a eles.

Ainda assim, poder-se-ia dizer que esse elemento, por si só, não se configuraria como algo "novo". No entanto, existe uma outra lógica presente nos jogos que, particularmente, os diferenciam de outras narrativas do gênero: o sentido de meritocracia e filantropia. Aos olhos das elites, ninguém ali se apresenta obrigado, tudo ocorrendo a partir do voluntarismo individual de cada participante. E ainda, uma vez dentro do jogo, todos são "iguais", com as mesmas oportunidades e, dessa forma, criando uma forma "justa" de fazê-los "merecerem" o capital doado pela "caridade" dos ricos. De forma sucinta, tal raciocínio não é muito diferente de quando Jeff Bezos, o dono da Amazon e um dos homens mais ricos do mundo, investe bilhões de dólares para visitar "rapidamente" o espaço, sem qualquer motivo para além da satisfação de seu ego, apenas para, em seguida, afirmar que tal atitude representaria uma forma de ajudar ao resto do "mundo carente". Tudo isso porque, no fim, a filantropia não passa de uma esmola dada por aqueles que retém em si o poder da transformação, o mesmo poder que tira dos indivíduos oportunidades dignas, fazendo-os serem levados, de forma coagida, ao periférico, retirando-lhes o poder da escolha e, portanto, no universo da série, obrigando-os sim a participarem de orgias sádicas para o bel-prazer das elites.

Há ainda algo a se dizer a respeito dos membros da milícia dos jogos; os soldados vestidos de vermelho, organizados hierarquicamente pela forma de suas máscaras. Por mais que se neguem, estes também são explorados, mas se conformam pelo poder de subjugar aos ainda mais miseráveis que eles. Eles representam a personificação do discurso de classe média clássico, que os eleva a uma categoria mais próxima a das elites, apenas como uma forma de aliená-los.

Round 6, por fim, é uma série refrescante, no sentido de ser algo novo quando poucos conteúdos originais estão se popularizando nesse ano. É uma fácil recomendação àqueles que se interessam por tal tipo de narrativa, mas é necessário alertar para o material ultrassensível aqui colocado. De qualquer forma, toda estória que serve enquanto crítica às elites vale um pouco de nosso tempo, não?

124 visualizações0 comentário

Posts Relacionados

Ver tudo
bottom of page