Amar, Verbo Intransitivo
- Lucas Barreto Teixeira
- 5 de dez. de 2021
- 3 min de leitura
Atualizado: 28 de dez. de 2021
A produção literária brasileira não é reconhecida pela forma como esconde temas sensíveis em seu corpo textual. Aliás, é muito pelo contrário, visto que muito antes do modernismo, seja em "Memorias de um Sargento de Milícias" ou n"O Cortiço", autores cavavam fundo nas relações perturbadoras encontradas em diferentes níveis sociais de nossa complexa sociedade. Mário de Andrade, embora em um outro período histórico, não foge de tal legado, seja em seu "Macunaíma", herói torto simbólico de um espírito nacional distorcido, e muito menos em seu "Amar, verbo intransitivo", parte tragédia, parte comédia, onde se desdobra a partir do moralismo das elites brasileiras do início do século XX marcado pela intolerância e pela estupidez, herança ainda muito bem guardada em nossos tempos.

Poucos são aqueles que nunca ouviram falar sobre o presente romance. Ainda assim, não sei dizer o quanto do conteúdo é conhecido em si, ou debatido, em comparação com outras obras de Mário de Andrade. Eu mesmo demorei muito a ler, e mesmo já tendo um conhecimento prévio de sua estrutura foram muitas as vezes que me vi surpreendido pelo astuto talento do autor, capaz de mesclar críticas com o desconforto utilizando-se de artifícios muito originais e característicos. Em um primeiro momento, o Idílio é apresentado a partir da contratação de Fräulein Elza, que já carrega o sexista termo como forma de caracterizá-la aos olhos do contratante: o Pai da família Sousa Costa. A personagem então passa a agir como governanta no núcleo familiar, dando lições às crianças, dentre elas destacando-se o menino Carlos, agressivo e despretensioso, que não tarda a se apaixonar, como Édipo, pela figura materna e tenra a ele apresentada.
Até então, muito era possível se comparar com um "Lolita" ou semelhante, em uma relação grotesca que se desenvolve, em um molde incestuoso, até Mário de Andrade apresentar a face real de sua obra. Elza, alemã patriótica, muito idealiza seu futuro a partir de um "homem-sonho", uma abstração criada a partir de ideias de subserviência, superando assim sua condição de "Fräulein", tendo antes, contudo, que se sustentar com uma prática geradora de ojeriza a qualquer idealização romântica. Ao ser contratada por Sousa Costa, fora chamada com o intuito de deitar-se com Carlos, criança, como uma forma de afastá-lo de mulheres ditas interesseiras ou viciadas em ópio, empurrando-o a alguém para lhe ensinar valores. O autor não poupa espaço para explorar a ideia na mente de seus personagens, seja o falso moralismo da elite, desesperada a espalhar pelas gerações sua mesquinhez e misoginia, seja a hipocrisia europeia, sempre colocando-se em uma posição filosófica superior, ignorando suas atitudes e baseando-se em um campo das ideias muito distante da realidade.

"Amar, Verbo Intransitivo" é uma estranha mistura de texto cômico ambientado na trágica realidade de um país quebrado. Cômico pela própria estrutura textual, marcada por uma flexibilidade linguística modernista típica, trazendo à vida personagens toscos e estúpidos, especialmente presente na família, marcada pelo ódio de classe e pela inação decorrente de uma vida privilegiada. A tragédia, por outro lado, está em parte no enredo em si, fragmentando o espírito infantil por promessas sexuais, causando traumas severos, mas em maior parte por se tratar de uma realidade até hoje presente no Brasil, tanto pelo discurso misógino de classificação entre tipos de mulheres em moldes românticos e sexuais, quanto pela preservação da ideia de masculinidade tóxica, em um vigor masculino marcada pela dominação sexual. No romance, Elza desperta todas as provocações possíveis neste sentido, mostrando-se xenofóbica e racista em muitos momentos, e sentindo-se coisificada em muitos outros, formando uma colcha de retalhos psicológicos, rendendo uma das mentes da literatura mais ricas de se especular e pensar.
Ler o Idílio de Mário de Andrade acabou por se mostrar muito mais instigante do que imaginava em um primeiro momento. Muitas das vezes somos movidos a ler um clássico apenas por ser um clássico, sem pensar, antes, em seu conteúdo e em seu valor. Tendo isso em mente, é de minha opinião que tal romance apresenta muito mais insinuações e complexidade do que textos mais lidos do autor, rendendo, até hoje, provocações recentes e necessárias.

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