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Policarpo Quaresma em 2021

  • Foto do escritor: Lucas Barreto Teixeira
    Lucas Barreto Teixeira
  • 20 de jun. de 2021
  • 3 min de leitura

A genialidade de Lima Barreto já foi tema de diversos textos, a maior parte de uma capacidade analítica muito superior do que qualquer ensaio que pudesse elaborar. A sátira já carrega consigo mais de cem anos de inspirações e adaptações, porém não é capaz de perder sua atualidade, de cruel relevância à presente realidade. Um tanto saudosista pelo emblemático romance, enquanto reflexivo e apreensivo como qualquer cidadão comum, coloquei-me a pensar o que Policarpo Quaresma pode ensinar, demonstrar ou fazer refletir sobre a sordidez em 2021.

Das obras que constituíram a identidade da literatura nacional, poucas deixam de criar pelo exagero, pessimismo ou pela simples e eficiente caricatura. Temos, é claro, os romances idílicos de José de Alencar, apoiados nos ideais europeus de colonização, porém é apenas com Dom Casmurro ou Macunaíma que, com todas suas falhas, enxergamos uma identidade nacional mais próxima da realidade: mesquinha, pacata e cruel em sua mediocridade. Policarpo Quaresma, em certo sentido, pode ser facilmente colocado ao lado de títulos desse tipo, não enquanto herói ou símbolo de identidade, mas como retrato de uma nação.

O romance de Lima Barreto, apesar do teor cômico, dialoga com uma tragédia inevitável e inerente ao Brasil enquanto território político. Policarpo age enquanto defensor de um ambiente pré-intervenção colonial, entregando pessoalmente inquéritos a instituições políticas sobre interferências linguísticas, buscando uma identidade única da cultura nacional e até criando plantações originárias a partir de práticas antigas de cultivo da terra. No entanto, todas suas tentativas de se pautar pela identidade inventada se provam em vão, seja por incompetência, falta de foco ou falsa modéstia. Contudo, ao buscar Floriano Peixoto, bajulado em um culto pela personalidade, o personagem tem todas suas perspectivas dilaceradas, mergulhando em um pessimismo triste.

O interessante na obra, entretanto, é a profundidade dada ao autor para os arredores do protagonista. Vem a minha mente, primeiro, a percepção de população, passiva e estática, adotando uma papel de plateia. Em seguida, Ricardo Coração dos Outros desperta meu mais profundo interessem, em especial por seu título recheado de lirismo e otimismo, apenas para, de poeta romântico de cantigas populares, ser apanhado pela guerra, fazendo-o deixar de tocar por completo em sua viola. No fim, quando Policarpo é executado pelo mesmo Estado que idolatrara em toda sua vida, o livro não permite ao leitor sentir qualquer coisa além de pesar e profundo remorso pelo destino de todos os tocados pelo entusiasmo do homem. Enquanto tudo acontece, é claro, a plateia permanece imóvel, absorvendo a realidade como um produto de ficção, sem qualquer força de vontade para reagir contra a tirania.

Em 2021, Policarpo Quaresma parece mais presente do que nunca. Sonhadores e otimistas cada vez mais se revelam em espaços digitais, mesmo com suas falhas e incompetências, e cada vez mais são silenciados pela tirania de um Floriano Peixoto. Guerras são travadas em esferas psico-sociais, cada vez mais nos espaços de intimidade, alimentadas por um culto de personalidade moldada por um militarismo cego, destruidor e genocida. É sempre importante nos lembrar do histórico político que moldou o Estado nacional, banhado pelo sangue de lideranças lunáticas e medíocres, que castra os capazes de carregar os Corações dos Outros, fazendo toda a população mergulhar em profundo pessimismo e incapacidade de reação. Fico a me perguntar o que de fato mudou desde Lima Barreto. Passamos por tanto, e mudamos tão pouco...

O autor do triste fim de Policarpo Quaresma foi preso, internado em um manicômio em um verdadeiro processo de marginalização tão criticado por Artaud. Hoje, seria chamado de "vagabundo", carregando ofensas para esvaziá-lo de si mesmo, deixando-o de lado até o próprio Estado apagar sua genialidade, seja pelo desespero ou pela própria execução, distante dos olhares da mídia. Eu entendo porque o autor enxergava o "povo" enquanto plateia, mas já não vejo essa definição corresponder à realidade absoluta. Afinal, tal plateia hoje é carregada de tanta raiva e implacável ira que agora obedece às ordens mesquinhas para silenciar a si mesma. Ao mesmo tempo, uma parte de tal plateia também busca reagir, talvez ainda de forma tímida, mas opondo-se de forma direta e sendo capaz de marchar desafiando a própria pestilência para desafiar as vontades de tiranos. Policarpo, sim, teve um triste fim. Contudo, se tal destino é, de fato, inerente à sociedade enquanto um todo, isso talvez dependa apenas de um esforço conjunto, guiada em ritmo, como se levada pela melodia de esperança em uma velha viola.



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