Enterre seus mortos
- Lucas Barreto Teixeira
- 27 de abr. de 2021
- 2 min de leitura
Em meio a tantas histórias sendo contadas incessantemente no espaço virtual, é raro encontrar algo que surpreende. Encontrar algo genuinamente novo em meio a tantas obras é raro, embora sempre satisfatório. Com a autora Ana Paula Maia, reencontrei esse exato sentimento de surpresa e descoberta, em um livro cruel e simbólico, capaz ainda de fazer pensar.
"Enterre seus Mortos" é um livro sobre a relação entre a sociedade e a morte, enfatizando como a burocracia torna o mundo um lugar insensível e cinza. Com forte vertente kafkiana, a autora explora a perspectiva de Edgar Wilson, um removedor de corpos de animais mortos em estradas, tornado bruto por seu cotidiano, até encontrar o corpo de uma mulher pendurado em uma árvore, sendo atacado por abutres. Incomodado pela presença do cadáver, ou tocado por algum resto da humanidade, decide embarcar em uma viagem, ao lado do padre excomungado Tomás, para fornecer à vítima um final digno.
Edgar é, ao mesmo tempo, a síntese de um personagem kafkiano e seu oposto. Na literatura de Kafka, seus personagens passam por um processo de "reificação", ou "coisificação", quando tudo que importa passa a ser, simplesmente, meras "coisas", sem valor ou sentimentalismo. Nesse sentido, em muitas formas o protagonista de Ana Paula Maia mergulha em tal ambientação, trazendo um claro paralelo com Gregor Samsa, alvo da "Metamorfose" de Kafka, tornando-se um inseto pela insensibilidade ao seu redor. No caso de Edgar, sua metamorfose se dá ao se transformar em um abutre, de forma figurativa, fissurado pelas carcaças dos mortos, inserido em um mundo onde a morte é mera inconveniência. A antítese, entretanto, é vista nos relances de sensibilidade de Edgar, em cada momento de harmonia em seu cotidiano regrado e pútrido, fazendo-o ser purificado pela tentativa de encontrar conforto a suas carcaças.

A grande força de "Enterre seus Mortos", contudo, está na forma como a autora consegue absorver estilos para criar algo próprio. Mesmo com a inspiração kafkiana, a obra não se limita a um "romance kafkiano", sendo algo completamente novo. Juntando personagens instigantes com uma história sagaz, amarrada pela escrita inacreditável de Ana Paula Maia, o livro se distingue do comum, gerando o sentimento de novidade e fascínio.
Apesar de não ser uma leitura fácil, é difícil não se perder no que o livro propõe. A narrativa, concisa e sem espaço para se perder, prende o leitor de forma instantânea, rendendo qualquer um a seus encantos. Recomendar o livro não é o suficiente, é necessário dizer: coloque-o no topo de sua lista de leitura.
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