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Eu Sou Um Gato

  • Foto do escritor: Lucas Barreto Teixeira
    Lucas Barreto Teixeira
  • 14 de out. de 2021
  • 3 min de leitura

O sarcasmo é um elemento muito difundido na literatura brasileira. Qualquer um é capaz de entender, dentro do termo "machadiano", o teor irônico que tais textos carregam. O que eu não sabia, ao menos até há alguns meses, é que um autor contemporâneo fazia algo muito parecido com o Mestre das Letras brasileiro, apenas do outro lado do mundo, na Terra do Sol Nascente. Natsume Soseki é um autor clássico da literatura japonesa, que viveu na virada do século XIX para o XX, e estudou a fundo a cultura inglesa antes de retornar a seu país, onde escreveria diversos textos engenhosos, debochando em especial do homem japonês do período Meiji. E seu primeiro lançamento, "Eu Sou um Gato", já carregava sua personalidade cômica, tornando-se icônico.

"Eu Sou um Gato" é um título autoexplicativo. O livro é narrado por um gato sem nome, e que já na primeira frase demonstra sua personalidade, anunciando quem é ao utilizar uma forma formal do pronome reto, referenciando-se por "wagahai", termo utilizado apenas por pessoas de autoridade na sociedade japonesa. O narrador, dessa forma, coloca-se enquanto uma forma elevada, observando o comportamento de humanos ao seu redor como uma espécie de divindade curiosa, testemunha da estupidez dos homens. O primeiro estúpido, nesse sentido, é encontrado em seu "amo", um professor de inglês primário, que se tranca no escritório a fim de se colocar em um místico espaço de superioridade intelectual e acadêmica apenas para cochilar em meio a seus livros não lidos. O professor é uma das figuras centrais, e é a partir de seus relacionamento que seu gato investiga a curiosa natureza humana.

Dentre os objetos de estudo, encontramos outros homens ambiciosos, no sentido de especulação acadêmica, porém igualmente ridicularizados pela sagacidade felina. Somos apresentados a um mentiroso compulsivo, que tem como único prazer humilhar os outros como sofista e aparenta certo cinismo, ao mesmo tempo em que conhecemos um estudante esforçado das ciências naturais, que passa os dias realizando tarefas aparentemente ludibriosas e inúteis a fim de se chegar a questões específicas que não valem o esforço de Sísifo. As colocações de Soseki, contudo, não são mera invenção humorística, tendo como base personalidades e personagens-tipo da sociedade japonesa, fascinada pelos valores ocidentais e ignorantes quanto a si próprios.

Sei ser injusto fazer a comparação do autor com Machado de Assis. No entanto, fui incapaz de realizá-la por um mero detalhe: o legado de Soseki carregado pelas eras. Afinal, a forma como o conheci se deu pelos jogos da série Ace Attorney, onde o autor é representado por um personagem cômico e representativo de diversas críticas realizadas ao espírito europeu. A nós, brasileiros, a figura lendária do Bruxo do Cosme Velho é representada em diversas obras, mas é interessantíssimo a forma como a literatura clássica pode ser integrada por mídias mais populares, exportando cultura para aqueles que não tiveram acesso a obras fora do eixo etnocêntrico.

O que pretendo desenhar, aqui, é uma análise da obra em conjunto com suas influências. Afinal, tanto Soseki quanto Machado são ensinados nas grades curriculares das escolas de seus países de origem, mas o fascínio causado por aqueles que não foram "obrigados" a ler suas obras revela uma natureza cruel da relação entre ensino e zelo pela cultura de formação. Em nosso país, Machado é por vezes discutido por ser desinteressante e monótono, quando na verdade tal relação se dá apenas pela forma como sua obra é apresentada em colégios (e a isso se estende Aluísio Azevedo, Jorge Amado, Clarice Lispector...), e quando estrangeiros entram em contato com o autor ocorre a maravilha do descobrir a genialidade no desconhecido.

Natsume Soseki, de forma similar, parece causar tal relação. Até porque, anteriormente, lera o nome apenas em referência a narrativas escolares, enquanto matéria de estudo, deixando de lado sua essência literária. Essa relação entre essência e percepção, ironicamente, é um dos principais pontos debatidos na obra de "Eu Sou um Gato", afinal o conhecimento passa a ser decorativo, e desvalorizado pelos homens que dizem buscá-lo e protegê-lo. Aparentemente, grandes autores são condenados a terem, eles mesmos, suas genialidades ocultas pela aparência do saber, onde o técnico é superior ao sensível.

O gato sem nome não parece entender essa relação. Nos capítulos finais, as discussões acadêmicas entre o professor e seus colegas se tornam cada vez mais descabidas, com a forma sobrepujando o conteúdo, mas ele não precisa compreender sua natureza para sofrer com as consequências de seu existir. Ao fim, morre uma morte vulgar e banal, simbolizando a sobrevivência da estupidez artificial e o fim engenhosidade natural, símbolo maior do sacrifício da cultura local pela absorção dos valores de forasteiros.


 
 
 

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