O Gore, o excesso da violência gráfica e a nova estética agourenta
- Lucas Barreto Teixeira
- 16 de mai. de 2021
- 4 min de leitura
Por sugestão de um contribuinte do site, assisti à "série do momento", Invincible. Em meio a uma história interessante e temas construídos de forma inteligente, a estória constrói pelo contraste, seja no cenário de vida ordinária/ extraordinária, ou na forma como herói e antagonista se formam em sintonia. No entanto, é pela violência que o contraste se consolida, quando missões heroicas revelam seu aspecto sanguinolento e massacre se mistura com a salvação. E é pelo excesso da violência gráfica que a série acaba se perdendo, assumindo tons de paródia pitoresca, apesar de, infelizmente, não ser a primeira vítima de tal estética. Afinal, em qualquer mídia moderna, o sangue derramado e a carne rasgada parecem ter se tornado moda, enfraquecendo o impacto que tais narrativas poderiam causar, ignorando qualquer tipo de equilíbrio ou bom-senso.

Vamos colocar os pontos nos "i"s. O gore enquanto ferramenta estética sempre esteve presente em diversas obras, seja enquanto entretenimento ou enquanto meio de choque. As mortes de Jovem Werther e Madame Bovary me veem à mente constantemente quando penso no assunto, pela crueldade e frieza dos detalhes, já que seus fins trágicos e lentos precisam impactar o leitor. Porém, com o cinema e a proliferação de mídias visuais, a representação do grotesco e do nojento se tornou cada vez mais comum, chegando a flertar com a literatura, mas com o choque redobrado pela imagem ao invés da mera descrição em prosa.
A questão é que não há nada de errado com o "Gore" em si, ao menos quando o limitamos à sua forma mais simples, à base de sangue e vísceras, excluindo, no presente texto, o aspecto sexual do termo. No entanto, a forma como o instrumento é empregado pode causar real e verdadeiro dano. Todo aparato estético é carregado de símbolos, e utilizar violência gráfica é uma escolha simbólica. Os filmes "Slashers" são grandes exemplos dessa questão, em específico na forma como o assassino ou monstro escolhe e executa suas vítimas. Em Halloween, de John Carpenter, por exemplo, Michael Myers atua como um agente moralizante, assassinando brutalmente mulheres distantes de conceitos como a da castidade. Da mesma forma, ao gravar o reboot da série, em 2018, Carpenter optou por colocar na câmera apenas as mortes exageradas de personagens masculinos, usando a estética para quebrar a expectativa e renovar uma mensagem antiquada (para quem se interessar mais no assunto, vou deixar aqui a sugestão de seguir algumas pessoas que sabem desse assunto bem mais do que eu: The Witching Hour e Flores de Saturno).
Quando colocado em tal perspectiva, o tópico finalmente pode ser desenvolvido. Utilizar certa estética invariavelmente carrega sentido, direto ou indireto, e cada decisão de quem idealiza a obra acarreta em alguma reação. Vamos voltar para Invincible, para tentar entender o que a série acerta e erra, investigando os possíveis usos da violência gráfica. De forma geral, não são muitos os momentos de exagero, e eles têm um propósito direto e claro de demonstrar os efeitos de conflitos entre super-heróis, criando um sentido de responsabilidade no protagonista. Entretanto, o roteiro como um todo sempre se revela mais contido nos personagens, muito sóbrio e intimista, fazendo o choque de tais cenas ser ainda maior. Quando olhamos para The Boys, por outro lado, uma série com várias similaridades, o grotesco está intrinsicamente ligado ao roteiro, suavizando o choque, mas tornando a estória, especialmente a partir da segunda temporada, desinteressante.
Existe uma diferença brutal entre o choque pelo choque e o choque como ferramenta narrativa. Quando vemos monstros grotescos interagindo com a infanta protagonista de "O Labirinto de Fauno", não sentimos náusea, mas pavor e preocupação, visto que o choque entre fantasia e realidade, naquele contexto, apontava de que forma o horror verdadeiro estava na figura paterna. Contudo, se uma das criaturas passasse a dilacerar personagens secundários, em um festival sanguinolento, a mensagem se perderia, criando apenas um espetáculo visual. The Boys, por mais promissor que tenha parecido à primeira vista, reduziu-se a tal espetáculo, tirando o foco das temáticas abordadas, e Invincible segue caminho semelhante já em sua primeira temporada.

Ao meu ver, o grande problema da nova estética agourenta é que tudo se transformou em espetáculo. Muitas foram as discussões nos anos 1980-90 sobre como jogos se tornaram violentos, especialmente no auge de Mortal Kombat e Doom, mas a maior parte dos comentários se dava a partir de adultos antiquados, sem uma reflexão artística muito profunda, caindo sempre em um discurso moral tosco. Contudo, tais jogos inauguraram uma era de mídias apelativas, sem nenhum compromisso com qualquer coisa além da violência gráfica, esvaziando o "Gore" de sentido. Afinal, a naturalização do grotesco tira o valor do choque, fazendo cada vez mais obras se apoiarem no visual exagerado sem qualquer sentido. Novamente, não há nada de intrinsicamente errado na maior parte de tais obras, porém essa tática de mercado extrapola, diminuindo o potencial de uma narrativa e prejudicando seu resultado final.
O exemplo mais recente de tal efeito, e de maior proporção, foi The Last Of Us II. Claro, por conta de seus temas e personagens, uma horda de desocupados na internet passou a fazer comentários idiotas e ignóbeis, que nem valem à pena ser levados em conta em qualquer discussão a cerca da obra. Ao invés disso, vou falar apenas sobre o elemento "Gore" que me deixou completamente desinteressado no jogo. Na verdade, desde o primeiro título já sentia incômodo com certas cenas, mas ver como a violência ultra realista se dava me afastou por inteiro da estória e dos personagens que, sem dúvida, haviam me gerado interesse antes. Quanto mais realista a violência se dá, mais incômodo sinto, especialmente quando animais estão envolvidos (no presente caso, cachorros são alvos da violência explícita por parte dos personagens), e não consigo mais enxergar a obra em meio ao espetáculo sanguinolento.
Considero "A Nova Estética Agourenta" essa miscelânea de boas estórias perdidas no meio de vísceras e sangue. Claro, posso estar sendo injusto com diversos artistas que investiram tanto para criarem obras da mais excelente qualidade, mas a inserção do "Gore" enquanto tática de mercado apenas as esvazia. Invincible e The Last of Us são apenas dois em meio à verdadeira explosão de vítimas de tais práticas, e infelizmente não serão os últimos. Em todo caso, fico curioso em ver como o "Gore" pode ser utilizado no futuro em obras que realmente sabem utilizá-lo, para renovar o estilo.
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