O lúdico em A Casa Da Coruja
- Lucas Barreto Teixeira
- 27 de jul. de 2021
- 4 min de leitura
O que faz uma narrativa ser boa? Trama complexa? Personagens de fácil identificação com o público? O trabalho de temas profundos? Pergunto porque, no fim, não há uma regra clara para esse tipo de questão. Afinal, o que faz Godard ser bom não é o mesmo que faz Vingadores ser bom, e a busca por uma regra universal quanto a estruturas narrativas não pode ser considerada sem um punhado de exceções. No entanto, por vezes encontramos algo feito de forma tão certa, destacando cada caixinha encontrada nos guias mais simples de escrita, ao mesmo tempo recheada de tanta paixão que é impossível deixar de mergulhar fundo em tal universo. A Casa da Coruja, animação criada por Dana Terrace, é um dos melhores exemplos desses casos, fazendo qualquer um se apaixonar por cada detalhe da obra.

Enquanto escritor, não é raro me pegar pensando na validade de guias e regras de estrutura narrativa. Minha visão é simples, talvez até um pouco teimosa: se o autor consome obras em excesso, boas e ruins, mergulhando em todas elas com doses de paixão e senso crítico, com a prática é possível estabelecer as próprias normas. Quando nos apegamos a regras de um ou outro escritor famoso, limitamos não apenas nossa imaginação como nosso potencial como um todo, encarando uma criação apenas pela técnica rígida, quase científica, e deixando de lado a sensibilidade, verdadeiro elemento essencial a toda boa narrativa. E a Casa da Coruja é um exemplo claro da necessidade de se ter paixão pela própria criação.
Tudo da série cumpre os parâmetros básicos, seguidos à risca em especial por autores americanos contemporâneos. Da engenhosa geração maldita, os Estados Unidos por anos criaram artistas medíocres, uma geração baseada em criar o máximo de variações de todas fórmulas narrativas existentes, em uma onda enfadonha que tomou todo o globo, ocultando aqueles que, de fato, mereciam as luzes de holofotes. A Disney, inclusive, mostrou-se enquanto epítome de todo o processo, concentrando todo potencial criativo dentro da toca de rato coberta à ouro, tentando, a todo custo, fazer o máximo de lucro possível em cima de obras que apresentavam, anteriormente, um mínimo de originalidade (basta observar a onda de filmes medíocres baseados em animações clássicas). Dana Terrace, contudo, furou esse bloqueio criativo com uma série tão cheia de sensibilidade, com personagens tão adoráveis, uma narrativa tão criativa... mas é claro, a empresa já tomou providências para impedir que essa perigosa animação continue a inspirar criatividade.

A Casa da Coruja é uma série lúdica, tendo Luz como sua protagonista. A jovem, sentindo-se excluída por aqueles que a viam enquanto alguém estranha, um dia encontra uma estranha coruja que a leva até um portal para uma realidade fantástica, com bruxas, monstros e demônios: tudo que ela sempre amou. Tão logo é apresentada ao mundo novo, conhece Eda, a mulher-coruja, uma das bruxas mais poderosas, no entanto renegada e solitária, que vive ao lado de King, um demônio que, ao invés de mostrar-se enquanto uma temível criatura das trevas, apresenta-se com pelos fofos e gestos caninos.
Pela sinopse, a série parece ser uma simples história de fantasia, lugar-comum e sem muito a acrescentar. Todavia, o uso de personagens-tipo e fórmulas narrativas, aqui, tem um propósito claro, e que não tarda a demonstrar o que a criadora propõe, de fato. Afinal, o uso de elementos fantásticos sempre foi uma forma elaborada de se criar metáforas, e é em sua simbologia que a animação brilha. Eda, por exemplo, fora amaldiçoada, rendendo-lhe uma situação de abandono por parte da sociedade enquanto um todo, realizando uma interessante e única relação com DSTs. A situação política, por outro lado, apresentada aos poucos e de forma instigante, critica ideais coloniais de avanço civilizatório apagando culturas apegadas ao espaço natural, ao mesmo tempo em que a organização educacional aqui apresentada remonta uma importante reflexão quanto à pressão exercida em jovens pelo educação americana.
Não são tais comentários políticos, contudo, que fazem a série ser tão boa. Aliás, é fundamental destacar a forma como a representação de diferentes minorias foi feita aqui, sem estereótipos e sem serem jogadas no canto da tela, como é costume de criações da Disney, mas todos esses elementos somam. Porque, de qualquer forma, a riqueza da série está no lúdico, nas pequenas interações entre personagens, no humor escrito de forma sagaz e contextualizada na modernidade. Mesmo destacando cada cena enquanto cada estrutura de uma fórmula, mesmo encarando a obra enquanto um todo como variação de qualquer outra obra fantástica, é a escrita, os detalhes artísticos, a sensibilidade envolvida em todo processo que, esses sim, enriquecem a Casa da Coruja.
A Casa da Coruja é um sopro de esperança perante o mar de mediocridade que se alastra por todas as categorias midiáticas, infelizmente breve, visto que a Disney encurtou seu prazo de vida. è tão triste ver vergonhosa e injusta decisão sacrificando um trabalho tão delicado realizado por tão talentosos artistas, mas talvez a criatividade não seja tão vendável e desejada pelos gananciosos executivos do estúdio. Não há como eu recomendar ainda mais a animação, por tudo que promete, executa e acrescenta, até porque se não voltarmos nossa atenção para tal sopro de esperança, nunca os holofotes voltarão suas luzes para lá.
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